Durante seu ano sabático, em 2014, o treinador do Corinthians foi à Europa ver como jogam — e, sobretudo, como treinam — as melhores equipes do mundo. De lá trouxe um arsenal de recursos e um padrão de jogo que dão algum alento ao triste futebol brasileiro
MÃOS QUE NÃO PARAM - À margem do campo e nos treinamentos, Tite não baixa a temperatura nunca. O placar: intensidade 10 x 0 descontração(Daniel Kfouri/VEJA)
Um pouco antes da Copa do Mundo de 2014, para sempre resumida pelos humilhantes 7 a 1 do Mineirão, o ex-craque alemão Paul Breitner foi à televisão com um veredicto amargo e visionário. "O Brasil dorme desde o título de 2002. Nós, na Alemanha, olhamos para fora. Vocês precisam aceitar que jogam um futebol do passado." Oito meses depois da maior de todas as derrotas, nada mudou e, aparentemente, nada mudará. Com uma possível única exceção, a de Adenor Leonardo Bachi, o Tite, gaúcho de 53 anos, treinador do Corinthians. Ele poderia ter se deitado nas glórias dos títulos da Libertadores e do Mundial de 2012. Poderia deixar que se mantivesse a fama de competência associada às brincadeiras pelo uso exagerado de expressões rebuscadas, algumas delas inventadas, como "treinabilidade", em "titês" castiço. Mas não. No ano passado, afastado do clube paulista, tirou um ano sabático para estudar futebol - e da temporada de estudos nasceu um novo técnico, com postura à margem de campo e nos treinamentos compatível com a dos grandes da Europa.
Tite acompanhou in loco, nos estádios, dez partidas de clubes europeus e sul-americanos, inclusive a final da Liga dos Campeões do ano passado, com a vitória do Real Madrid sobre o Atlético de Madrid, em Lisboa. Passou alguns dias nos centros de treinamento do Arsenal, da Inglaterra, e também do Real espanhol. Anotou tudo o que viu com dedicação juvenil. Tem gravados todos os 64 jogos da Copa do ano passado, que disseca com rigor científico, atento "ao posicionamento tático, estratégia e marcação". O objetivo, nada inconfessável, era ser chamado para a seleção depois do Mundial. Como o telefonema da CBF não veio, voltou ao Corinthians. Neste ano, são dezessete jogos - treze vitórias, três empates e uma única derrota. São 29 gols a favor e seis contra. O.k., não é nenhum Barcelona (dezenove jogos, dezessete vitórias e duas derrotas, 59 gols a favor e treze contra), mas ninguém estará errado ao dizer que a equipe de Tite é a mais bem arrumada do Brasil hoje (e quando se diz hoje, no Brasil, é hoje mesmo, porque é comum que uma pequena sucessão de resultados ruins ponha tudo a perder).
Em outubro do ano passado, depois da frustração com a seleção, o técnico gaúcho fez uma visita de cinco dias ao Real Madrid, comandado pelo italiano Carlo Ancelotti. A dupla almoçou e jantou junto e a sobremesa para Tite foi um convite para acompanhar os treinamentos do time de Cristiano Ronaldo. "O Ancelotti é um meio-termo entre o José Mourinho, do Chelsea, e o Pep Guardiola, do Bayern", afirma o brasileiro. "De um extrai a marcação forte; do outro, a agressividade e a criatividade no ataque." Tite diz ter emprestado de Ancelotti, com quem hoje conversa por WhatsApp, uma arte há muito perdida no Brasil, a dos treinamentos como fiel reprodução das situações de jogo - algo que apenas Carlos Alberto Parreira praticou com excelência, inclusive com a seleção campeã do mundo em 1994, sobejamente criticada pela chatice, mas que já pede uma revisão, a partir da qual descobriremos que a equipe tocava a bola como os bons clubes europeus contemporâneos.
A estratégia, ensina Tite, ancorado em seu patrono italiano, é eliminar os treinos recreativos, popularmente chamados de "rachões", mais adequados a treinar risadas que jogadas. Diz-se que jogo é jogo, treino é treino - com Tite, treino também é jogo. Tentar mimetizar o que se dará na partida é o que vale. "Depois de um treinamento, o Ancelotti veio me dizer o seguinte: 'Tite, eu abro mão da quantidade, mas não da intensidade'. Daí eu abri um sorriso, porque esse também é um conceito meu. Um dia antes de qualquer jogo, faço o que ele faz: dou vinte minutos de atividade, depois praticamos bola parada. A descontração se faz no aquecimento, no jogo de bobinho." Soa um tanto óbvio, mas a graça e a dificuldade do futebol, e que compõem sua mágica, é fazer do simples o natural. Uma das mais conhecidas citações do esporte - "É preciso atacar e defender com a máxima eficiência" -, feita pelo alemão Josef "Sepp" Herberger (1897-1977), treinador da seleção campeã do mundo de 1954, ao vencer na final a inimitável Hungria de Puskas e cia., tem o jeitão de lugar-comum, mas virou mantra buscado com avidez pelos treinadores que sabem o que querem. Parreira a repete com frequência. Outro histórico técnico, o holandês Rinus Michels, o pai do "futebol total" da Holanda vice-campeã do mundo de 1974, também bebeu dessa mesma matriz genética, seguida por Cruyff e Guardiola.
"Se você ataca, é porque abriu espaço na defesa, e, se está na defesa, há espaços para atacar", disse Cruyff, um dos mais inovadores jogadores de todos os tempos, depois transformado em excelente treinador. Tite, modestamente, tenta se colar a esse mesmo DNA. Sabe que não dispõe da mesma qualidade de mão de obra (embora jamais reconheça essa triste condição), sabe que os torneios locais, especialmente os regionais, beiram o grotesco e tem a exata noção de que nas partidas da Libertadores mais vale o coração que a cabeça. E, no entanto - até que desponte um resultado ruim, imperdoável no Brasil -, deu ao Corinthians algo raríssimo: padrão de jogo. Não é o caso de esperar grandes espetáculos, jogos de muitos gols, mas toda partida do Corinthians de Tite tem feito jus a outra máxima de Cruyff: "O futebol é um jogo para ser jogado com a cabeça".
Veja.com
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